Coluna Vitor Vogas
Golpe de 1964: o que temos para comemorar?
Numa ditadura, a primeira vítima é a verdade; a segunda é a liberdade do povo; a terceira é o próprio Parlamento

Assembleia Legislativa do Espírito Santo. Foto: Divulgação/Ales
A Assembleia Legislativa do Espírito Santo cometeu um erro terrível ao aprovar a realização de uma sessão especial em alusão ao aniversário de 58 anos do golpe militar de 31 de março de 1964. Feliz e acertadamente, corrigiu esse equívoco a tempo, na sessão da última quarta-feira (30), em que a maior parte dos deputados em plenário derrubou o “OK” para a realização da homenagem. Se a Assembleia tivesse aceitado ser palco de uma celebração do golpe de 1964, teria perpetrado um golpe contra o próprio Parlamento: um verdadeiro “autogolpe”.
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As carpideiras do arbítrio falam em “revolução de 1964”. Não falam em “ditadura”, mas em “regime militar”. Em vez de destruição da democracia, preferem dizer que os militares “a salvaram”: o “avesso do avesso”, como cantaria Caetano, um dos muitos gênios artísticos do país exilados, ou autoexilados, para salvar a própria integridade física, durante esse período de triste memória na história nacional.
É preciso, porém, chamar as coisas pelo nome certo: o que houve em 1964 foi essencialmente um golpe, com tanques de guerra ando por cima da Constituição que então vigorava (a de 1946). O que dali em diante se seguiu, até o distante ano de 1985, foi uma típica ditadura, com todos os componentes que definem um regime ditatorial em qualquer lugar do mundo e momento da História, incluindo a violência de Estado praticada contra os próprios cidadãos.
Não existem ditaduras boas – logo, dignas de ser comemoradas. Seja ela de direita ou de esquerda, seja civil, militar ou cívico-militar (como talvez seja mais adequado denominar a nossa), não existem ditaduras boas. Numa ditadura, a primeira vítima é a verdade. A segunda são as liberdades individuais do povo (de escolha, de expressão, de opção e manifestação política, artística e intelectual etc.). A terceira é o próprio Parlamento, que é, fundamentalmente, o espaço de representação da voz do povo.
Numa ditadura, o povo não tem voz real. Logo o Parlamento, caixa de ressonância dessa voz, tem invariavelmente dois destinos: ou é literalmente fechado – o que equivale a dizer que o Poder Executivo pode tudo, conferindo a si mesmo poderes ilimitados –, ou existe de maneira fictícia, pra inglês ver. No nosso caso, pra norte-americano ver…
Não estou aqui para dar aula de História – há pessoas muito mais qualificadas que eu para isso. Mas basta dizer que, no Brasil, de 1964 até o início dos anos 1980, ocorreram exatamente as duas coisas.
Para quem não sabe – e alguns parecem não saber, ou simplesmente não se importar com este fato –, o governo do general Costa e Silva literalmente fechou o Congresso Nacional por quase um ano, do fim de 1968 até o fim de 1969. Foi uma das consequências imediatas do Ato Institucional nº 5 (AI-5). Depois, já no governo do general Geisel, as portas do Congresso voltariam a ser cerradas na marra, por um período menor em 1977 – mais ou menos como Eduardo Bolsonaro declarou que gostaria de fazer com o STF…
E, mesmo enquanto esteve aberto, o Parlamento era palco de uma farsa: não havia debate real, disputa política real, pluralidade política… Basta dizer que uma das ações mais nefastas da ditadura foi, precisamente, a cassação dos mandatos, a prisão e a perseguição política de inúmeros parlamentares que não agradavam aos militares por seus posicionamentos.
Nas várias casas legislativas (Assembleias, inclusive no Espírito Santo; Câmara dos Deputados e Senado), quantos não tiveram sumariamente extinto o mandato conferido pelo povo? Quantos não foram presos e exilados? Quantos simplesmente “sumiram”?
Para ficar em um único exemplo, o corpo do deputado Rubens Paiva, cassado em 1964, torturado e assassinado em 1971, jamais foi localizado. Senhores militares e homenageadores da ditadura militar: o que foi feito com o deputado Rubens Paiva?
Aliás, uma das primeiras medidas da ditadura foi justamente cassar o mandato de vários parlamentares, como dispunha o AI-1, baixado dias após o golpe de 1964 pelo “Comando Supremo da Revolução”, como era autoproclamada a junta militar que se instalou no poder. O mesmo ato decretava: “a revolução vitoriosa se legitima por si mesma”.
Que conceito de “democracia” é esse?!?
Tornemos a 1964
O que houve naquele 31 de março foi o Exército brasileiro rasgando a Constituição então vigente e depondo um presidente legitimamente empossado e em pleno exercício do mandato, mediante ameaça de uso da violência do aparato militar, sob o pretexto de “livrar o país da ameaça comunista”. E é verdade: com amplo apoio de muitos setores da sociedade civil, da classe política e da imprensa, inclusive expresso em editoriais (alguns veículos fariam um mea culpa tardio, décadas depois).
João Goulart era um político de esquerda? Era. Tinha o apoio de segmentos políticos ainda mais à esquerda, como o Partido Comunista Brasileiro? Tinha. Mas era, pessoalmente, um político “comunista”? Não, não era. Era representante do trabalhismo, do mesmo PTB de Getúlio Vargas. Não pregava uma “revolução comunista”. Defendia “reformas de base” – e vai uma enorme distância entre “reformas” e “revolução”.
Jango não agradava a determinados setores políticos e da sociedade (a UDN, a classe média, as elites). Mas a questão central é: como presidente democraticamente empossado após a renúncia de Jânio Quadros, ele tinha legitimidade para implementar o seu programa de governo até o fim do mandato? É claro que tinha! Os insatisfeitos que buscassem fazer-lhe oposição e barrar-lhe suas medidas no Congresso. E, pelo voto popular, emplacar um novo presidente, alinhado com suas ideias, na eleição seguinte.
Na Constituição de 1946, não havia uma linha que dissesse: “Se setores políticos e sociais estiverem descontentes e preocupados com as medidas propostas pelo presidente no poder, as Forças Armadas têm a prerrogativa constitucional de destituí-lo e assumir, por si mesmas, o governo do país, medida essa que estará autolegitimada”. Mas foi, rigorosamente, o que fizeram os militares naquele fatídico 1964.
Muito bem: Jango então se exila no Uruguai, e os militares o substituem prometendo o que mesmo? A convocação de novas eleições presidenciais. Sua estadia no poder seria ageira, apenas para “salvar a democracia”. Uma vez restabelecida a ordem e expulsa a “ameaça comunista”, os cidadãos brasileiros poderiam eleger seu novo presidente.
Para quem não conhece a história nacional, sabe quando o Brasil voltaria a ter eleições diretas para presidente? Em 1989. Isso mesmo: de 1960 a 1989, os brasileiros aram quase três décadas sem o direito de escolher o seu próprio governo central.
Mas não foi só isso.
A “ditadura escancarada”
Em 1965, mediante o AI-2, uma série de partidos políticos tiveram a sua atividade proibida. Um deles por acaso vem a ser o do governador do Espírito Santo: o Partido Socialista Brasileiro (PSB). Dali em diante, só dois partidos tinham licença para existir no Brasil: a Arena (do governo) e o MDB (supostamente “oposição”, mas com margem de ação extremamente limitada).
Nos anos seguintes, sucederam-se os exílios, até mesmo de líderes políticos que haviam apoiado de peito aberto o golpe, como o udenista Carlos Lacerda. Com a agem de bastão de Castelo Branco (mais moderado) para Costa e Silva (representante da ala dura do Exército), a ditadura começaria a se acirrar de verdade. Em dezembro de 1968, o presidente editou o AI-5. Diga-se de agem, um dos pretextos definitivos para isso foi um quase inofensivo pronunciamento de Marcio Moreira Aves, um deputado federal do MDB, na tribuna da Câmara.
Virou clichê dizer que o AI-5 foi “o golpe dentro do golpe”. Mas não há definição melhor para o ato. Entre muitas outras anomalias nem um pouco “democráticas”, essa decisão imposta pelo governo militar fechou o Congresso Nacional (acabando com qualquer debate) e extinguiu o direito ao habeas corpus no Brasil.
Desse ponto em diante, qualquer pessoa (meu pai, sua mãe, nossos avós etc.) poderia ser presa sem justa causa, sem culpa formada, sem processo legal… e ficar apodrecendo na prisão… simplesmente porque o governo a considerava uma ameaça, um indivíduo “subversivo”.
Institui-se, assim, a perseguição política aberta como política de Estado. E com ela veio outra coisa, não tão aberta assim, mas fartamente documentada, provada e testificada: a tortura sistematicamente praticada, nos “porões da ditadura”, contra os presos políticos, por agentes da repressão.
Agentes como Carlos Brilhante Ustra, exaltado em 2016, no plenário da Câmara Federal, pelo então deputado Jair Bolsonaro. Ustra é oficialmente declarado pela Justiça brasileira como um “torturador”. E não existe covardia maior, crime de lesa-humanidade maior, que a tortura de uma pessoa rendida.
Entre outras grandes contribuições para a “preservação da democracia brasileira” (de novo: 30 anos sem eleições diretas), agentes como ele comandavam sessões de choques elétricos, pau-de-arara, maçarico, espancamentos e práticas que prefiro não explicitar, conforme fartamente testemunhado por sobreviventes da tortura, por exemplo, em depoimentos colhidos pela Comissão Nacional da Verdade.
Durante a ditadura, pelo menos 300 brasileiros foram comprovadamente assassinados… pelo Estado Brasileiro. Muitos outros figuram no rol de “desaparecidos”.
Enquanto as prisões arbitrárias e rituais de tortura ocorriam longe da vista do “cidadão de bem”, os brasileiros nem sequer tinham o direito de escolher seus senadores e governadores. Estes eram os chamados “biônicos”: nomeados, em todos os estados, pelo governo central militar.
Você, cidadão que me lê (e que talvez até pense: “Ah, mas na ditadura é que era bom…”), consegue se imaginar, hoje, sem poder nem sequer votar no presidente por quase 30 anos? Sem nem sequer ter o direito de ajudar a escolher o senador e o governador do seu próprio estado? Pois é…
Enquanto isso, jornais e revistas eram censurados e “empastelados”. Imprensa livre e independente não existia. A informação real e completa, livremente apurada, não chegava à população.
Enquanto isso, professores universitários eram exilados, expulsos da cátedra a que haviam chegado por méritos, impedidos de lecionar… quando não coisa pior…
Enquanto isso, escritores, músicos, cantores, dramaturgos e cineastas eram exilados, censurados, intimidados… Não podiam exercer na plenitude seu talento artístico e sua contestação social através da arte.
Mas e o lado positivo?
Mesmo os “aspectos positivos’ da ditadura devem ser bastante relativizados. “Ah, mas naquele tempo o ‘cidadão de bem’ podia andar em segurança nas ruas.” Talvez, lá nos anos 1960, 70 e 80, a violência urbana não tenha afetado diretamente o tal “cidadão de bem”.
Mas foi exatamente nessas décadas que ascenderam no Brasil, por exemplo, o tráfico de drogas e os grupos de extermínio (origem das atuais milícias nas metrópoles brasileiras). Além disso, o incremento da violência urbana é consequência direta das disparidades sociais que se acentuaram imensamente no Rio, em São Paulo etc. exatamente durante esse período.
“Ah, mas naquele tempo o Brasil cresceu demais economicamente.” Depende. De fato, nos primeiros anos da ditadura, sobretudo durante o governo Medici (o de maior repressão), o Brasil vivenciou o chamado “milagre econômico”, com o PIB crescendo a taxas de cerca de 10% ao ano. Foi um delírio, uma miragem coletiva, reforçada por intensa propaganda oficial ufanista (“Pra frente, Brasil / do meu coração” etc.).
Nos anos seguintes, a conta chegaria: ficaria mais que provado que as políticas econômicas aplicadas por Medici e companhia geraram um crescimento absurdo da nossa dívida externa, a inflação que explodiu nos anos 1980 e a já mencionada desigualdade social.
“Ah, mas naquele tempo é que era bom, porque não havia corrupção…” Santa ingenuidade, Batman! Como é que alguém pode, honestamente, assegurar isso? Recordemos: não havia imprensa livre. Não havia Ministério Público investigando. Não havia Polícia Federal, ao menos não com independência institucional e com as funções que lhe competem na Nova República.
Resumindo: ninguém tinha como saber! Se algum agente privado quisesse corromper, e algum agente público quisesse ser corrompido, ambos tinham diante de si o melhor dos mundos: a população simplesmente não tinha como saber.
Perguntem a Emilio Odebrecht, e a tantos outros empreiteiros com vultosos negócios com o governo desde esse período, quando foi exatamente que começou a prática das propinas e do “toma lá, dá cá”.
A diferença é que, naqueles tempos, a chance de surgir de repente uma Operação Lava Jato, com cobertura ampla e independente da imprensa, era… abaixo de zero.
Conclusão
Tudo somado, sério: o que temos para comemorar? Ainda mais na Assembleia Legislativa, uma casa parlamentar, uma das vítimas do golpe…
Compreendo perfeitamente as motivações político-eleitorais do proponente da “homenagem”, o deputado Capitão Assumção (PL), bem como dos apoiadores da ideia.
Desde que Jair Bolsonaro prestou reverência a um notório torturador dentro do sagrado plenário da Câmara Federal e nada foi feito a respeito, a mensagem para o país não poderia ter sido mais clara: o “revisionismo histórico” está liberado. Quem torturava mulheres rendidas, presas e indefesas pode ser considerado “herói”, não mais de maneira envergonhada, mas com orgulho e sem pudor.
Depois que o presidente chegou ao poder, acentuou-se a deturpação histórica, a ponto de muitos nem sequer reconhecerem que tenha havido uma ditadura de 1964 a 1985, ou a grafarem entre aspas. Aspas que ofendem cada vítima e parente de vítima.
Felizmente, vivemos (hoje) numa democracia – em parte graças a esses que foram torturados, combatidos pelos que hoje preferem homenagear os torturadores. Então, entendo e respeito que muitas pessoas, como o próprio proponente da homenagem, tenham visão diferente de tudo o que escrevi aqui, ainda que fatos não sejam “opiniões”, e achem justo comemorar o golpe…
Querem celebrá-lo? Muito bem…. Mas não usem o Parlamento para isso.
E que a “homenagem” venha com uma explicação para todas as mães que jamais puderam enterrar os filhos “desaparecidos” pela “revolução de 1964”.
De preferência, com a localização dos corpos.
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